quarta-feira, junho 29, 2005

Liberalismo, um filho das luzes

HENRIQUE RAPOSO

1. Antes de mais, o “Noites à Direita”, assumindo-se como um projecto liberal, reivindica um pressuposto teórico: o Liberalismo Clássico também é um fruto ideológico do espírito iluminista do século XVIII. O Iluminismo não é monopólio das esquerdas continentais.

2. De facto, as esquerdas continentais sempre se assumiram como as únicas e exclusivas descendentes do Iluminismo. Ainda hoje, a vulgata proclama a Esquerda como filha única das Luzes. E este lugar-comum, claro, remete, de forma indiscriminada, todas as direitas para as terras escarpadas da reacção. De forma pavloviana, associa-se a expressão ser-se de direita à condescendente e automática condenação: reaccionarismo. Em Portugal, por exemplo, reaccionário continua a ser um carimbo que qualquer pessoa de direita recebe quando abre a boca para falar ou quando pega na caneta para escrever.

3. Pois bem, é tempo de meter esse carimbo no lixo. É tempo de pôr termo a esta caricatura que continua a bloquear o debate político. É tempo de terminar com o monopólio da esquerda sobre o legado dos iluminismos. É tempo de libertar a direita liberal, uma direita sem qualquer tipo de pó romântico, sem qualquer tipo de ácaro reaccionário, sem qualquer tipo de teia de aranha saudosista. Enfim, uma direita iluminista. Perguntará alguém: “mas o conceito direita iluminista não é um contra-senso?”. Quem fizer esta pergunta revelará ao mundo o seu estado de ineptidão ideológica, mostrará o seu desconhecimento pela história do pensamento e o seu provincianismo. Em suma, este inquiridor revelará que vive preso num mito. Que mito é esse? O mito que proclama o Iluminismo como propriedade privada da Esquerda.

4. Acontece que não existiu um Iluminismo mas iluminismos. Por outras palavras, o iluminismo francês de Voltaire, Diderot e Rousseau não esgotou as Luzes setecentistas. O racionalismo dogmático de Diderot e o culto da Vontade Geral de Rousseau não constituíram as únicas consubstanciações desta época. O mundo anglo-saxónico não ficou arredado do espírito iluminista. Na Escócia, figuras como David Hume ou Adam Smith desenvolveram o Iluminismo Escocês. Nos EUA, James Madison ou Alexander Hamilton criaram o Iluminismo Americano.

5. Estes projectos iluministas anglo-saxónicos não tinham as ambições desmedidas do iluminismo francês. Hume e Madison já conheciam os perigos advenientes das utopias políticas, grandiloquentes do ponto de vista moral mas desastrosas na realidade histórica concreta, grandiosas para um conceito totalitário de Homem mas intragáveis para os (verdadeiros) homens. Hume e Madison distinguiram-se como defensores da pluralidade dos homens, enfrentando as correntes monistas que insistiam (e insistem) em impor um único ideal de Homem. E para a defesa do pluralismo, desenvolveram uma predisposição epistemológica céptica, isto é, não construíram um ideal de Razão abstracto. Para Hume e Madison, a razão humana era (é) apenas um instrumento e não um bem em si mesmo. Para os iluministas anglo-saxónicos, a razão era (é) um modo de gerir o presente terreno e não uma alavanca destinada a fazer descer o céu à terra. Criaram argumentos racionais destinados a gerir a Política. Recusaram o culto de uma Razão que aproximava (e aproxima) a Política da Teologia.

5. Ora, o Liberalismo Clássico é a consubstanciação dos ideais de Hume, Smith ou Madison. Aliás, o conceito liberalismo clássico é um sinónimo de iluminismo escocês ou iluminismo americano. Portanto, é tempo de colocarmos ponto final na cómoda dicotomia entre as terras altas e legítimas dos iluministas de esquerda e as terras baixas e ilegítimas dos reaccionários de direita. À direita, também há gente iluminista.

1 Comments:

Blogger Tiago Mendes said...

Ia escrever isso mesmo ontem no Insurgente - sobre o iluminismo 'a direita. Se se conseguir ultrapassar o preconceito que existe em Portugal - por ignorancia - contra o "ser liberal" e o que isso significa, ahco que ha' futuro. Mas isso exige explicar/esclarecer os (diferentes) conceitos da palavra liberal e o que isso implica (o que o Henrique faz com mestria) e por outro lado estar atento a quem alardeia muitas coisas sobre isso sem ter lido grande coisa e com base mais em declaracoes de fe' do que actos de razao.

5:05 da tarde  

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