quinta-feira, julho 14, 2005

Leituras liberais (II)

Democracia e liberdade

LUCIANO AMARAL

Para a existência do regime demo-liberal que quero celebrar e defender é essencial a separação de Estado e sociedade civil

Na minha discussão com Manuel de Lucena a propósito do PREC, tentei a certa altura demonstrar a ambiguidade democrática do Partido Socialista português na década de 70, relembrando o seu programa de então, onde se previa (ao estilo comunista) a nacionalização integral da economia. Aí, o Manuel acusou-me de resvalar para uma "espécie de marxismo de direita", que atribuiria ao "demo-liberalismo político uma base económica que ele não tem forçosamente de ter". Isto permitiu ainda ao Manuel elaborar um pouco sobre uma distinção clássica na ciência política, aquela que separa a democracia do liberalismo: "Tendo a democracia e o liberalismo começado por se hostilizar (...), estamos hoje para aqui a invocar uma tradição demo-liberal como se o casamento celebrado pelo hífen fosse coisa óbvia."

De facto, o casamento não é óbvio, mas existe. Antes de lá chegar, porém, gostaria de devolver ao Manuel a acusação de "marxismo", não de "direita" nem textual, mas para dizer que o seu raciocínio me parece padecer de um certo vício marxista. O qual consiste em separar a economia da política, o que no marxismo foi baptizado com as expressões "infra-estrutura" e "superstrutura". Se a separação tem alguma utilidade académica, já em termos doutrinários parece-me não existir nem dever existir.
Dito de forma simples: a "liberdade" (independentemente da forma como a definir, o que dava para aí mais uns dez artigos) ou compreende o conjunto das actividades humanas (economia, política e o resto) ou não existe. Assim como restrições sérias à liberdade política permitem definir uma ordem política como não livre, o mesmo o permitem restrições sérias à liberdade económica, até porque (comprovando a interligação de todas as esferas de actividade humana) estas restrições económicas conduzem inevitavelmente a restrições de tipo político.
Não foi por acaso que John Locke definiu a "propriedade" como o conceito essencial para a existência de liberdade. Só que, em Locke, a "propriedade" não era apenas a posse de bens, mas um conjunto de direitos, incluindo o direito a essa posse mas também uma série de outros direitos a que chamaríamos "cívicos" e "políticos". Para Locke, a "propriedade" era a esfera individual (material e imaterial) que protegia os indivíduos da interferência estatal. A democracia não tem que coincidir com isto. Um regime democrático pode violar aquela esfera de liberdade e permanecer democrático.
Schumpeter, numa famosa elaboração sobre o problema, chegou mesmo a explicar que o socialismo integral (do tipo existente nos regimes comunistas do século XX) podia coexistir com a democracia como a entendemos hoje: a propriedade poderia ser inteiramente pública e, mesmo assim, sobreviver a capacidade dos cidadãos para, de quatro em quatro anos, substituir o Governo. Para tanto bastaria a existência de equipas de pessoal diferentes, dispostas a competir, dentro de um contexto de propriedade inteiramente estatal, em cada ciclo eleitoral pela conquista do poder. Mas é aqui que chegamos ao tal hífen juntando as palavras demo e liberal. Será que um regime deste tipo poderia ainda ser considerado livre? Não creio, e se a democracia ocidental fosse isto, eu não estaria pronto a defendê-la.
Para a existência do tal regime demo-liberal que quero celebrar e defender é essencial a separação entre Estado e Sociedade Civil, e para esta distinção são essenciais a propriedade privada e um mercado onde interagem agentes privados, separados do Estado.Um Estado absorvendo o conjunto da actividade económica seria um Estado totalitário, mesmo se democrático. Que liberdade restaria quando todas as escolhas de produção e distribuição estivessem politizadas e, consequentemente, dependentes de decisões administrativas? Esse seria um regime tirânico, onde a substituição do Governo resultaria apenas de uma escolha sobre a equipa mais "eficiente" na gestão sem limites do conjunto da vida.
O que me permite terminar numa nota de actualidade. O demo-liberalismo é, de facto, um regime de compromisso precário. Os democratas não liberais têm de estar dispostos a aceitar a existência de mecanismos liberais (não necessariamente democráticos) no funcionamento do regime. Os liberais têm de aceitar restrições limitadas às liberdades, desde que decididas democraticamente. O equilíbrio é precário e pode quebrar a qualquer altura.
No momento que vivemos em Portugal (e na Europa), ele ameaça quebrar sobretudo (embora não só) pelo lado da liberdade económica. Quando metade da economia e dos cidadãos dependem directamente do Estado, estamos já (literalmente) a meio caminho daquela tirania demo-socialista definida por Schumpeter. O que começa a ter reflexos políticos, com a escolha eleitoral a reduzir-se cada vez mais a uma decisão sobre gestionários dos gigantescos meios públicos, incapazes de promover reformas que libertem a nossa sociedade e lhe permitam voltar a gerar uma prosperidade que, a cada dia que passa, nos escapa um pouco mais.

Luciano Amaral escreve todas as quinta-feiras no "Diário de Notícias"