Leituras liberais
Uma nova cidadania
RUI RAMOS
O recibo do IRS funciona como uma espécie de amnistia moral, libertando o nosso egoísmo de todas as responsabilidades.
Conhecem os argumentos contra os liberais? São três: os pobrezinhos, os pobrezinhos e os pobrezinhos. Os liberais, diz-se, não sabem que fazer com quem não tem talento, sorte, ou pais ricos. No seu mundo de concorrência, não existe a palavra “solidariedade”. Daí a necessidade do Estado Social, única maneira de nos pouparmos uns aos outros a violência e indignidade do nosso egoísmo.
Valeria a pena reexaminar essa famosa “solidariedade”do Estado Social. Repararam, por acaso, na crónica dos esforços de Maria Filomena Mónica para levar o Estado Social a interessar-se pela sorte de um menino abandonado, filho de uma deficiente mental? De todas as repartições e instituições onde pulsa o suposto coração terno do Estado Social, funcionários secos e lentos responderam-lhe que faltava mais uma certidão, que quem tratava do assunto estava de férias, e que depois telefonavam. Ninguém telefonou, e ninguém aparentemente regressou de férias. A burocracia não se deixou comover. No último artigo, Filomena Mónica confessa que quis crer, durante anos, que “os meus impostos servem para proteger os mais fracos”. De facto, foi neste grande embuste que o Estado Social nos tentou fazer acreditar. Com o Estado Social, não precisaríamos de nos preocupar com a nossa sorte, e muito menos com a dos outros. Desde que pagássemos impostos e respeitássemos regulamentos, poderíamos gozar o dia, viver para o momento, porque quando fosse preciso, um funcionário diligente haveria de intervir para prevenir a miséria humana. Só que a solidariedade automática do Estado Social, que trabalharia sem precisarmos de carregar no botão, é uma mentira.
O Estado Social criou um mundo em que todos podemos ser como o pai de Stuart Mill, que amava a humanidade em geral, e era indiferente a cada ser humano em particular. Oscar Wilde previu isso. Em ‘The Soul of Man under Socialism’, Wilde louvou o sistema socialista como um meio de nos dispensarmos de pensar nos outros: os poderes públicos encarregar-se-iam disso. O recibo do IRS funciona como uma espécie de amnistia moral, libertando o nosso egoísmo de todas as responsabilidades. E à indiferença comprada pelos contribuintes, corresponde o impudor dos enxames ansiosos por se apropriarem, através do Estado, da riqueza criada por outros. Todos podemos ser mais egoístas: uns ao dar, outros ao receber.
No âmbito do Estado Social, a liberdade do cidadão foi concebida como uma liberdade em relação às consequências das suas acções, e dos seus deveres para com os outros. Liberdade tornou-se equivalente de irresponsabilidade. Assim, o verdadeiro fundamento do Estado Social não é a solidariedade, mas a corrupção moral, porque nada corrompe tanto como a irresponsabilidade, essa característica dos escravos. O projecto político que pode ser derivado das tradições liberais não consiste no solipsismo ou no desprezo dos fortes pelos fracos, mas na responsabilização individual dos cidadãos por si próprios e pelos outros. Sem essa responsabilidade, nunca existirá aquela autonomia pessoal, aquela vida moral íntima, em cuja possibilidade apostaram as tradições liberais. É por isso que essas tradições contêm a mais profunda reflexão sobre associações voluntárias e participação política. Ao entregar, uma vez saciado o fisco, todas as responsabilidades ao Estado, o actual “modelo social” subverte a autonomia pessoal, reduzindo-a a um mero egoísmo. Contra o “modelo social”, as tradições liberais sugerem a hipótese de um “modelo cívico”, fundado numa nova cidadania, mais exigente, de indivíduos que nunca darão a resposta de Caim.
DIÁRIO ECONÓMICO DE HOJE
RUI RAMOS
O recibo do IRS funciona como uma espécie de amnistia moral, libertando o nosso egoísmo de todas as responsabilidades.
Conhecem os argumentos contra os liberais? São três: os pobrezinhos, os pobrezinhos e os pobrezinhos. Os liberais, diz-se, não sabem que fazer com quem não tem talento, sorte, ou pais ricos. No seu mundo de concorrência, não existe a palavra “solidariedade”. Daí a necessidade do Estado Social, única maneira de nos pouparmos uns aos outros a violência e indignidade do nosso egoísmo.
Valeria a pena reexaminar essa famosa “solidariedade”do Estado Social. Repararam, por acaso, na crónica dos esforços de Maria Filomena Mónica para levar o Estado Social a interessar-se pela sorte de um menino abandonado, filho de uma deficiente mental? De todas as repartições e instituições onde pulsa o suposto coração terno do Estado Social, funcionários secos e lentos responderam-lhe que faltava mais uma certidão, que quem tratava do assunto estava de férias, e que depois telefonavam. Ninguém telefonou, e ninguém aparentemente regressou de férias. A burocracia não se deixou comover. No último artigo, Filomena Mónica confessa que quis crer, durante anos, que “os meus impostos servem para proteger os mais fracos”. De facto, foi neste grande embuste que o Estado Social nos tentou fazer acreditar. Com o Estado Social, não precisaríamos de nos preocupar com a nossa sorte, e muito menos com a dos outros. Desde que pagássemos impostos e respeitássemos regulamentos, poderíamos gozar o dia, viver para o momento, porque quando fosse preciso, um funcionário diligente haveria de intervir para prevenir a miséria humana. Só que a solidariedade automática do Estado Social, que trabalharia sem precisarmos de carregar no botão, é uma mentira.
O Estado Social criou um mundo em que todos podemos ser como o pai de Stuart Mill, que amava a humanidade em geral, e era indiferente a cada ser humano em particular. Oscar Wilde previu isso. Em ‘The Soul of Man under Socialism’, Wilde louvou o sistema socialista como um meio de nos dispensarmos de pensar nos outros: os poderes públicos encarregar-se-iam disso. O recibo do IRS funciona como uma espécie de amnistia moral, libertando o nosso egoísmo de todas as responsabilidades. E à indiferença comprada pelos contribuintes, corresponde o impudor dos enxames ansiosos por se apropriarem, através do Estado, da riqueza criada por outros. Todos podemos ser mais egoístas: uns ao dar, outros ao receber.
No âmbito do Estado Social, a liberdade do cidadão foi concebida como uma liberdade em relação às consequências das suas acções, e dos seus deveres para com os outros. Liberdade tornou-se equivalente de irresponsabilidade. Assim, o verdadeiro fundamento do Estado Social não é a solidariedade, mas a corrupção moral, porque nada corrompe tanto como a irresponsabilidade, essa característica dos escravos. O projecto político que pode ser derivado das tradições liberais não consiste no solipsismo ou no desprezo dos fortes pelos fracos, mas na responsabilização individual dos cidadãos por si próprios e pelos outros. Sem essa responsabilidade, nunca existirá aquela autonomia pessoal, aquela vida moral íntima, em cuja possibilidade apostaram as tradições liberais. É por isso que essas tradições contêm a mais profunda reflexão sobre associações voluntárias e participação política. Ao entregar, uma vez saciado o fisco, todas as responsabilidades ao Estado, o actual “modelo social” subverte a autonomia pessoal, reduzindo-a a um mero egoísmo. Contra o “modelo social”, as tradições liberais sugerem a hipótese de um “modelo cívico”, fundado numa nova cidadania, mais exigente, de indivíduos que nunca darão a resposta de Caim.
DIÁRIO ECONÓMICO DE HOJE
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