quinta-feira, julho 14, 2005

Leituras liberais

Alternativas

RUI RAMOS

Será a democracia portuguesa um regime onde pode haver alternância de políticos, mas não de políticas?

Na passada semana, durante o debate parlamentar sobre o Orçamento Rectificativo, o eng. Sócrates disse algumas verdades. Não me refiro, como é óbvio, ao valor do défice orçamental ou à evolução da carga fiscal, matérias que, conforme já todos percebemos, estão para além da verdade e da mentira. Refiro-me ao que disse sobre a falta de alternativas à política do seu governo. Voltando-se para a sua esquerda, o eng. Sócrates acusou os adversários desse lado de quererem engrandecer o Estado, sem a franqueza de assumirem que isso teria de ser feito à custa dos cidadãos. Voltando-se para a sua direita, o eng. Sócrates foi mais cruel. A antiga maioria, segundo ele, não teria outra política senão as que ele próprio estaria, agora, a aplicar no governo. Em resposta, os visados discursaram sobre a Ota.

O primeiro-ministro esteve muito à vontade. Ninguém verdadeiramente contestou os princípios da sua governação. O eng. Sócrates quer apenas viabilizar o Estado Social. Acredita que é ao poder político que compete a distribuição de recursos e a gestão de incentivos. Como confessou o Ministro das Finanças, o Governo até gostaria de gastar mais, só que não há dinheiro. É isto que também pensam e desejam as oposições de direita? Será a democracia portuguesa um regime onde pode haver alternância de políticos, mas não de políticas?

Ao eng. Sócrates, convém que não haja alternativa. Aos portugueses, convinha talvez que houvesse. Porque a “crise” do Estado Social, de que se fala há décadas, não é um acidente, mas decorre da própria maneira de funcionar do Estado Social. Portanto, ou os portugueses se conformam com a “crise”, ou terão de sair para fora do Estado Social. E para sair do Estado Social, no âmbito da actual cultura política democrática, o caminho passa quase certamente pelas tradições ditas “liberais”, e mais especialmente pela concepção de um “modelo cívico”, assente na responsabilização dos cidadãos.

Começam aqui as dúvidas. Existem, em Portugal, comentadores e autores que usam as tradições liberais como ponto de vista analítico. Não existem líderes partidários que as tenham aproveitado como base de uma acção política. Sem políticos, pode-se, entre académicos e autodidactas, discutir indefinidamente os princípios e vantagens de um outro modelo de sociedade. Nem por isso haverá uma alternativa ao eng. Sócrates. Daí o à vontade do primeiro-ministro durante o debate.

É ridículo dizer que “não existe espaço” para um projecto de inspiração liberal neste país. O problema é outro. Há ou não, nos actuais partidos à direita do PS, líderes capazes ou disponíveis para elaborar, dentro desta democracia, um projecto que seja mais do que a viabilização temporária do Estado Social através da venda de património, corte de despesas e aumento de impostos? Ninguém lhes pede inflexibilidades doutrinárias ou que assaltem Palácios de Inverno. Apenas que participem nos debates e negociações do actual regime democrático em nome de uma visão alternativa àquela representada pelo eng. Sócrates.

Parece pouco? Há quem ache demais. Consta que, entre esses líderes, há quem já tivesse explicado, com manifesto enfado, que “o liberalismo só é bom para perder eleições”.
Não sei o que os líderes das direitas parlamentares entendem exactamente por “liberalismo”. Mas é obviamente algo de que não precisam para esse efeito. É que já provaram que são muito capazes de perder eleições sem ser liberais.

____

Rui Ramos é historiador, professor universitário e escreve esta coluna no "Diário Económico" à quarta-feira