quinta-feira, junho 30, 2005

Recomendado por leitor


O lado negro

RUI RAMOS

Há muitos anos, “liberalizar” significou, por exemplo, atenuar a censura e a repressão policial.
Talvez não acreditem, mas tempos houve em que “liberal” não era um insulto. Há muitos anos, “liberalizar” significou, por exemplo, atenuar a censura e a repressão policial. Hoje, a maioria do público identifica “liberalização” com cortar subsídios e restringir regalias. Naturalmente, não gosta do liberalismo e muito menos dos liberais.
Para muitos políticos, a rejeição do liberalismo traduziria a afeição das populações pelo corrente “modelo social”. Será isso? O Estado Social assenta no princípio de que a distribuição de recursos e rendimentos deve ser decidida pelo poder político. Os governantes do Estado Social, porém, conhecem bem a história do socialismo e a sua falência. Por isso, tentam combinar a apropriação e distribuição da riqueza pelo Estado, e a criação de riqueza por agentes privados numa economia de mercado mundial. Mas a tendência dominante do Estado Social é para a estatização da riqueza, expressa pela constante subida da receita fiscal em pergentagem do PIB. Os governantes admitem, porém, que esta tendência pode dificultar a competitividade dos empresários no mercado mundial. Por isso, enchem-se regularmente de coragem para sujeitar o Estado Social a reajustamentos mais ou menos violentos, a fim de evitar entrar no caminho do empobrecimento. Assim, no grande esquema do Estado Social, dá-se hoje para se tirar amanhã. Geralmente, o dar e tirar não é determinado por qualquer critério de justiça, mas pela correlação de forças entre os grupos com acesso privilegiado ao poder (partidos, sindicatos, lóbis, etc).
Como o que está em causa nestes agitados esforços de auto-disciplina é conter o “peso do Estado”, alguns chamam-lhe “liberalização”, quase sempre num sentido pejorativo. Provavelmente, porque existe a vaga ideia de que o “liberalismo” teve, em tempos, qualquer coisa a ver com a defesa de um “Estado mínimo”. Quem assim invoca o “liberalismo”, deseja obviamente insinuar que os governantes que procedem aos cortes são talvez agentes do “Estado mínimo” procurando sabotar o Estado Social. É uma invocação enganadora. Porque parece remeter para uma alternativa ao Estado Social, quando, neste contexto, estamos apenas perante o mecanismo corrector e equilibrante do Estado Social, uma espécie de lado negro da força. O público só gosta do Estado Social quando dá, mas não quando tira. Mas dar e tirar fazem igualmente parte do Estado Social. Quando recusam o “liberalismo”, o que as populações estão a fazer é, no fundo, recusar uma das faces do Estado Social: aquela que necessariamente não sorri, e a que impropriamente se chama “liberal”.
O uso de “liberal” ou “neo-liberal” para descrever pejorativamente as auto-correções do Estado Social tem sido muito útil aos interessados na manutenção do regime. A identificação do liberalismo como uma simples tendência sádica para cortar e restringir, permite-lhes evadir a verdadeira questão levantada a partir das tradições liberais: a possibilidade de elaborar um outro modelo social, assente na responsabilização dos cidadãos, e não no arbítrio do Estado. Infelizmente, os elementos não-socialistas da actual classe política não estão dispostos a assumir os debates necessários para desfazer o equívoco. Resta apenas um pequeno número de comentadores que, com um estoicismo quase incompreensível, não se importam de ser insultados ou ignorados. É pena. Porque seria interessante podermos finalmente dispôr, no horizonte da nossa política, de um liberalismo que não fosse o Estado Social contrariado, mas o contrário do Estado Social.


No "Diário Económico" de ontem, com agradecimentos a Rui Neves Soares pela sugestão.