Leituras liberais
A democracia vista de baixo
RUI RAMOS
O mal não está nas votações do “povinho”, mas no colapso do Estado de Direito e num sistema político incapaz. Nem sempre é fácil fazer da política uma coisa interessante. Foi o que se viu com estas últimas eleições de câmaras e freguesias. Para começar, como logo nos explicaram os entendidos, não era uma eleição, mas milhares de eleições, com dezenas de milhares de candidatos. Não se podia “generalizar”, nem sequer comparar as votações dos partidos, por causa das coligações. Depois, os nossos líderes de partido e opinião, com um ar muito sério, decidiram autorizar o eng. Sócrates a não tirar dos resultados conclusões tão dramáticas como o eng. Guterres há quatro anos. Correu-se assim o risco de ver as “autárquicas” desaparecerem do radar dos jornais e televisões. Surgiu então um condimento salvador: três ou quatro candidatos que tinham tido problemas com a polícia, e ao mesmo tempo com os líderes dos seus partidos. Já que não serviriam para atormentar o eng. Sócrates, as eleições iam servir para exercer indignação. Com maus modos, os líderes de partido e opinião exigiram que as populações dos concelhos de Gondomar, Oeiras, Felgueiras e Amarante fizessem o que as polícias e os tribunais não tinham sido capazes de fazer.
Houve nesta guerra santa contra os “arguidos” uma imensa hipocrisia. A campanha, mais do que de certezas judiciais, viveu dos preconceitos do centralismo iluminado contra o chamado “poder autárquico”. Em discursatas oficiais, é da praxe louvar o tal “poder” como um “pilar” da democracia. No comentário e na decisão política, pelo contrário, esse “poder” é invariavelmente tratado como o leproso do regime. Basta ouvir os nossos líderes falar da limitação de mandatos, das dívidas das autarquias, ou da degradação da paisagem. O que nos mostram é um país entregue a um feudalismo demagógico, em conluio com construtores civis e clubes de futebol. Tudo, obviamente, explicado pela boçalidade daquele género de povo que não costuma ir ao dentista e bate nos líderes nacionais dos partidos, quando estes os visitam em peregrinação justiceira. Vista de baixo, a democracia portuguesa consistiria apenas na exibição impúdica do “atraso” provinciano. Não seria melhor ficarmos todos às ordens da gente limpa e cosmopolita dos Ministérios de Lisboa?
No meio desta indignação centralista, muita coisa escapou. Ninguém, por exemplo, questionou um sistema político que esvazia os municípios de recursos e responsabilidades, empurrando os autarcas para o papel de agentes de “cunhas” em Lisboa, ou tribunos dos descamisados da periferia. Acima de tudo, pouca gente reparou na verdadeira explicação do fenómeno dos “candidatos arguidos”: um sistema judicial incapaz, há muito tempo, de incriminar ou de ilibar quem quer que seja. Basta lembrar os processos contra ministros e deputados desde há vinte anos. Quantos acabaram num esclarecimento definitivo? Quantos não fizeram suspeitar de que a separação de poderes não vai, frequentemente, além do papel? Há dois anos, a publicação das escutas judiciais aos líderes de um dos nossos maiores partido revelou aos portugueses o que ex-ministros verdadeiramente pensavam da justiça. Têm as populações de acreditar naquilo em que a nossa classe política já não acredita? Porquê, nesse caso, pedir-lhes que reneguem quem construiu piscinas e lhes serviu bifanas – só por causa de umas diligências judiciárias destinadas (segundo a tradição) a permanecer inconclusivas? O mal não está nas votações do “povinho”, mas no colapso do Estado de Direito, e num sistema político incapaz de gerar responsabilidades. É por aí que esta democracia pode resvalar para qualquer coisa de ignóbil e insustentável.
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Rui Ramos é historiador, professor universitário e um dos promotores das "Noites à Direita". Assina esta coluna semanalmente à quarta-feira no "Diário Económico".
RUI RAMOS
O mal não está nas votações do “povinho”, mas no colapso do Estado de Direito e num sistema político incapaz. Nem sempre é fácil fazer da política uma coisa interessante. Foi o que se viu com estas últimas eleições de câmaras e freguesias. Para começar, como logo nos explicaram os entendidos, não era uma eleição, mas milhares de eleições, com dezenas de milhares de candidatos. Não se podia “generalizar”, nem sequer comparar as votações dos partidos, por causa das coligações. Depois, os nossos líderes de partido e opinião, com um ar muito sério, decidiram autorizar o eng. Sócrates a não tirar dos resultados conclusões tão dramáticas como o eng. Guterres há quatro anos. Correu-se assim o risco de ver as “autárquicas” desaparecerem do radar dos jornais e televisões. Surgiu então um condimento salvador: três ou quatro candidatos que tinham tido problemas com a polícia, e ao mesmo tempo com os líderes dos seus partidos. Já que não serviriam para atormentar o eng. Sócrates, as eleições iam servir para exercer indignação. Com maus modos, os líderes de partido e opinião exigiram que as populações dos concelhos de Gondomar, Oeiras, Felgueiras e Amarante fizessem o que as polícias e os tribunais não tinham sido capazes de fazer.
Houve nesta guerra santa contra os “arguidos” uma imensa hipocrisia. A campanha, mais do que de certezas judiciais, viveu dos preconceitos do centralismo iluminado contra o chamado “poder autárquico”. Em discursatas oficiais, é da praxe louvar o tal “poder” como um “pilar” da democracia. No comentário e na decisão política, pelo contrário, esse “poder” é invariavelmente tratado como o leproso do regime. Basta ouvir os nossos líderes falar da limitação de mandatos, das dívidas das autarquias, ou da degradação da paisagem. O que nos mostram é um país entregue a um feudalismo demagógico, em conluio com construtores civis e clubes de futebol. Tudo, obviamente, explicado pela boçalidade daquele género de povo que não costuma ir ao dentista e bate nos líderes nacionais dos partidos, quando estes os visitam em peregrinação justiceira. Vista de baixo, a democracia portuguesa consistiria apenas na exibição impúdica do “atraso” provinciano. Não seria melhor ficarmos todos às ordens da gente limpa e cosmopolita dos Ministérios de Lisboa?
No meio desta indignação centralista, muita coisa escapou. Ninguém, por exemplo, questionou um sistema político que esvazia os municípios de recursos e responsabilidades, empurrando os autarcas para o papel de agentes de “cunhas” em Lisboa, ou tribunos dos descamisados da periferia. Acima de tudo, pouca gente reparou na verdadeira explicação do fenómeno dos “candidatos arguidos”: um sistema judicial incapaz, há muito tempo, de incriminar ou de ilibar quem quer que seja. Basta lembrar os processos contra ministros e deputados desde há vinte anos. Quantos acabaram num esclarecimento definitivo? Quantos não fizeram suspeitar de que a separação de poderes não vai, frequentemente, além do papel? Há dois anos, a publicação das escutas judiciais aos líderes de um dos nossos maiores partido revelou aos portugueses o que ex-ministros verdadeiramente pensavam da justiça. Têm as populações de acreditar naquilo em que a nossa classe política já não acredita? Porquê, nesse caso, pedir-lhes que reneguem quem construiu piscinas e lhes serviu bifanas – só por causa de umas diligências judiciárias destinadas (segundo a tradição) a permanecer inconclusivas? O mal não está nas votações do “povinho”, mas no colapso do Estado de Direito, e num sistema político incapaz de gerar responsabilidades. É por aí que esta democracia pode resvalar para qualquer coisa de ignóbil e insustentável.
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Rui Ramos é historiador, professor universitário e um dos promotores das "Noites à Direita". Assina esta coluna semanalmente à quarta-feira no "Diário Económico".
4 Comments:
" Acima de tudo, pouca gente reparou na verdadeira explicação do fenómeno dos “candidatos arguidos”: um sistema judicial incapaz, há muito tempo, de incriminar ou de ilibar quem quer que seja"
A indignação de comentadores, políticos e jornalistas a certas candidaturas roça o caricato, para não dizer má fé.
É certo e sabido que ninguém ascende aos cargos de topo, seja dos partidos ou poder central e local sem tráficos de interesses e influências. Veja-se o circo das negociações das listas partidárias. São poucos os que chegam a um cargo público ou partidário sem que pelo meio não tenham vendido a mãe, o cão ou o cú.
Os partidos e o estado da Justiça são os grandes responsáveis pela desconfiança da população em relação aos políticos e ao próprio Estado.
Esta mesma população sabe e sente na pele os resultados do desgoverno e dos tachos.
Fátima Felgueiras candidatou-se e ganhou porque a Justiça o permitiu e o povo, que acha que todos roubam, assim o quis.
A promiscuidade entre política e justiça impedem um funcionamento célere desta última. Porque a rapidez não interessa à política e a quem a faz. Porque TODOS têm telhados de vidro.
Por causa de coisas como esta, é que eu aqui venho religiosamente.
Também eu,embora não me pareça que estas eleições justificassem a que da do governo.
Justificar os textos é bom senhor Rui.
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