quarta-feira, setembro 28, 2005

Leituras liberais

Tranquilamente

RUI RAMOS

A incapacidade da facção dirigente do PS para produzir um candidato presidencial à sua imagem é sintoma de fracasso. Ele ainda não avançou, mas já tem uma enchente de adversários à espera, nervosos, quezilentos, aos empurrões uns aos outros. Falo dos candidatos presidenciais que se propõem vencer o “candidato da direita”. Até agora, são seis: o da facção vencedora nas últimas eleições para secretário geral do PS; o da facção derrotada nessas eleições; o do PCP; o do Bloco de Esquerda; o do PCTP-MRPP; e o do POUS. Eis o leque da esquerda aberto em todo o seu esplendor sectário. Todos se dizem de esquerda, mas cada qual representa uma capelinha peculiar, ardendo em rancores arqueológicos contra as outras capelinhas. Todos prometem entrar disciplinadamente na procissão contra o “candidato da direita”, mas cada qual vai, por enquanto, fazendo o que pode para ver vacilar os outros andores.

Esta torre de Babel presidencial tem uma causa: o malogro do projecto da “esquerda reformista”. Inventada por Clinton e divulgada por Blair na década de 1990, essa esquerda perdeu na América, deixou de ter credibilidade intelectual em Inglaterra, falhou na Alemanha, e está a ser varrida pelo velho castrismo na América Latina. Na Europa, o descalabro do Estado Social e a ofensiva do terrorismo islâmico deixaram-na, em geral, confusa e desmoralizada. Em Portugal, a incapacidade da facção dirigente do PS, vagamente identificada com a “esquerda reformista”, para produzir um candidato presidencial à sua imagem e semelhança é um sintoma desse mesmo fracasso. Fatalmente, a mobilização eleitoral das esquerdas vai assentar no medo às “reformas”, e na identificação do “candidato da direita” com essas “reformas”. Desse modo, uma maioria presidencial de esquerda, dependente dos votos do PCP, do BE, do PCTP-MRPP, do POUS e da facção derrotada do PS, poderá sempre ser apresentada, com alguma razão, como um mandato para o imobilismo. As eleições presidenciais revelarão provavelmente aquilo que as legislativas de Fevereiro esconderam: que as esquerdas, neste momento, não têm condições para sustentar uma governação reformista que habilite e liberte os cidadãos para assumirem responsabilidades e criarem oportunidades num país de economia aberta e com uma demografia mudada.

Contra candidatos de facções, explorando o sectarismo e o medo, convinha ao país que surgisse um candidato independente com uma visão tranquila das reformas. Pelas razões expostas acima, um candidato desses, neste momento, só pode erguer-se à direita das esquerdas. Um candidato independente não quer dizer um candidato metafísico, neutral nos debates, mas um candidato livre de facturas partidárias e capaz de ultrapassar velhas incompatibilidades. Às esquerdas, neste momento, não há ninguém assim. O candidato aceite pela facção dirigente do PS, pelo modo como apareceu, não é hoje um ex-presidente, mas apenas um ex-secretário geral do PS.

Os candidatos das esquerdas justificam o seu fraccionamento pelo combate à abstenção. Não se deve subestimar essa estratégia. Um candidato à direita dessas esquerdas precisa, também ele, de mobilizar. As esquerdas vão explorar o medo que as reformas inspiram a quem, por enquanto, vive num artifício suficientemente confortável para pensar na mudança como uma perda. Nada alimenta tanto o medo como o desconhecido e a impostura. Um candidato contra o medo deve explicar e ser franco. Deve tranquilizar, porque só a tranquilidade levará os cidadãos a novas experiências. Esperemos que, contra os seis cavaleiros do medo e do sectarismo, esse candidato apareça. Aparentemente, já há uma pessoa. Só não sabemos ainda se há também um projecto e a consciência do que é necessário fazer. Será preciso aguardar. Tranquilamente.
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Rui Ramos é historiador, professor universitário e assina esta coluna semanalmente à quarta-feira no "Diário Económico".