quinta-feira, outubro 27, 2005

Leituras liberais

Contra a Parede

LUCIANO AMARAL

Foi nos anos 80 do século XX que a companhia Nintendo criou Super Mario, um jogo de computador em que o herói (Super Mario, precisamente), um bonequinho simpático ostentando um bigode entre Ali (o Químico) e um motorista de táxi, salta e se desentranha em múltiplas tarefas complicadas. No jogo, há circunstâncias em que Mario não consegue superar os obstáculos e fica preso, a correr freneticamente contra a parede. Agora, um conjunto de simpatizantes do candidato Mário Soares criou um blogue ao qual deu, justamente, o nome de Super Mário. Super Mário, o blogue, oferece a maior parte do tempo um espectáculo parecido com o do pequeno herói bigodudo embatendo sucessivamente contra a parede. Mas o problema não é apenas do blogue, é também de Soares e de todos os seus apoiantes. E o problema é a absoluta incapacidade para apresentarem qualquer argumento estruturado em favor da sua candidatura.

Esta incapacidade tem origem no facto de a esquerda estar no poder. E a esquerda está no poder de forma dupla e paradoxal. Ela começa por estar no poder num sentido estrutural o nosso regime é uma social-democracia, o que é uma ideia de esquerda. Ora, a esquerda, que histo-ricamente sempre gostou de se apresentar como o partido da transformação do mundo, não tem hoje (depois do espectáculo de opressão e miséria do socialismo real) qualquer alternativa para oferecer à social- -democracia. Só que a esquerda está também no poder num sentido mais conjuntural, através do actual Governo, e é daqui que nasce o paradoxo. Porque este Governo tem-se entretido a dar umas valentes machadadas na dita social-democracia. Perante a clamorosa incapacidade para continuar o curso seguido até agora, o Governo passou a aplicar um receituário que anteriormente classificaria como próprio do "capitalismo selvagem". O paradoxo é, portanto, o de uma esquerda que, perante a inescapável realidade da crise, utiliza os métodos que a direita usaria para a enfrentar. Lembra um pouco o escorpião, que, quando rodeado de fogo, se suicida picando-se a si próprio com a cauda venenosa.

Isto deixa a esquerda sem argumentos razoáveis contra Cavaco. Afinal, ela não pode acusá-lo de querer apoiar políticas "neoliberais", quando é ela mesma que as aplica a si própria. Ela sabe perfeitamente que Cavaco presidente seria o primeiro a suportá-la na tarefa em que afirma ter embarcado agora. Incapaz de utilizar estes argumentos, resta-lhe o velho bordão do autoritarismo genético da direita Cavaco representaria um "messianismo re- vanchista", reclamando a "subversão do regime constitucional", senão mesmo do regime democrático. Esta acusação aparece sob duas formas. Uma é a forma palerma, que consiste em estabelecer paralelos toscos entre Cavaco e Salazar. É uma linha que está presente em muitos dos pequenos textos do blogue Super Mário. Por vezes, juntam-se ainda aqui umas larachas frouxas, a resvalar para a snobeira lisboeta, sobre a vivenda Mariani e a origem social popular de Cavaco. A outra forma é um bocadinho mais esforçada e aparece com uns tintes de constitucionalismo, consistindo em acusar Cavaco de querer "presidencializar" o regime. Também esta não merece mais do que um ou dois comentários.

O nosso regime é semipresidencial, e no âmbito desse princípio cabe ao Presidente influenciar a sociedade e a governação no sentido que melhor entender. Para isso, o Presidente possui vários meios os discursos, as visitas, as reuniões com o Governo e os partidos, o poder de veto, o poder de dissolução do Parlamento ou de demissão do Governo. Sobre isto pouco há a dizer: Cavaco, se eleito, não terá mais nem menos poderes do que os seus antecessores. Mas há outro problema, que tem que ver com a crise e a sucessiva incapacidade das diversas situações governamentais (de direita e de esquerda, de coligação ou maioria absoluta monopartidária) em resolvê-la. Não é possível negar que o papel do Presidente se torna mais importante nestas circunstâncias, porque ele vai ter de apoiar o Governo num período tormentoso e porque também ele vai ter de dar sugestões para a ultrapassagem da crise. Admitamos que o ambiente convida a um maior intervencionismo presidencial. Mesmo assim, o desafio colocar-se-ia da mesma maneira a um Presidente Cavaco e a um Presidente Soares. Perante esta situação, os eleitores apenas têm de colocar a si próprios a pergunta: qual deles, com os seus princípios ideológicos e características pessoais, é a pessoa mais indicada para lidar com ela, usando os poderes do Presidente? A resposta é, evidentemente, diferente conforme o eleitor. Como é óbvio, Cavaco tem uma ideologia diferente de Soares e a esquerda não pode esperar que abdique dela quando entrar em Belém. Mas em matéria de intervencionismo presidencial o potencial é idêntico entre ambos. A conversa da "presidencialização" aplicada apenas a Cavaco não passa de um papão para quem não quer discutir ideias. Mas, lá está, é aí que reside o problema da esquerda: é que, neste momento, ela não tem nenhuma.

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Luciano Amaral é professor universitário, promotor das "Noites à Direita" e escreve todas as terças-feiras no "Diário de Notícias"

1 Comments:

Blogger Nuno M Almeida said...

Excelente texto.

Nuno MA
www.arte-de-opinar.blogspot.com

4:16 da tarde  

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