segunda-feira, novembro 07, 2005

Leituras liberais

O fim dos equilíbrios

JOÃO MARQUES DE ALMEIDA

1. A “intifada” de Paris, que já dura há mais de uma semana, demonstra o colapso de um dos equilíbrios centrais da ordem política e social dos países europeus. Podemos chamar-lhe “patriotismo pós-nacionalista”. Por um lado, o Estado nacional e as identidades nacionais continuaram a desempenhar, após 1945, um papel crucial na política do velho continente, e os momentos decisivos da integração europeia reconheceram e respeitaram sempre essa realidade. Por outro lado, este patriotismo cívico e pós-bélico está assente na convicção de que o “velho nacionalismo” morreu com a Guerra de 1939-1945, tendo ficado enterrado nas suas ruínas. No plano externo, a ordem pós-nacionalista manteria a paz permanente entre as potências europeias; no plano interno, onacionalismo deixaria de ser o motor da vida política: os partidos nacionalistas desapareceram e o nacionalismo deixou de ser um caminho de sucesso para se atingir o poder. Durante décadas, os cidadãos europeus conseguiram o feito notável de terem deixado de ser nacionalistas, continuando no entanto a ser patriotas.
As imigrações das décadas de 1960 e de 1970, com origem nas antigas colónias africanas e asiáticas, constituíram um desafio ao patriotismo pós-nacionalista europeu. Até então o compromisso tinha sido relativamente fácil devido a três factores: as memórias recentes da Guerra, a prosperidade económica e o facto das identidades nacionais não estarem ameaçadas.
A integração dos imigrantes exigia um compromisso entre os europeus e os que chegavam. Os primeiros aceitavam o crescente pluralismo étnico e religioso das suas sociedades e os segundos não só cumpriam as regras fundamentais das suas novas sociedades como teriam que se submeter às estruturas de autoridade pública.
Este último ponto do compromisso está ameaçado com os distúrbios das “pequenas faixas de Gaza” que existem à volta de Paris, tal como ficou ameaçado com os suicidas bombistas britânicos que se fizeram explodir no dia 7 de Julho. Irónica e tragicamente, estamos a assistir na Europa às mesmas imagens de Israel e da Palestina que estávamos habituados a ver no conforto e no sossego de nossas casas. Por trás destas imagens, espreita uma velha sombra europeia de tons demasiado negros: o nacionalismo xenófobo.

2. Nos debates sobre o “modelo social europeu” e o liberalismo presta-se uma excessiva atenção ao Estado: o seu crescimento descontrolado, as suas funções e a sua reforma. Ignora-se quase por completo o outro lado: a ideia de cidadão em sociedades “liberais-sociais”. Tal como no caso do patriotismo, o contrato económico e social do pós-Guerra está a atingir o ponto de ruptura.
Os hábitos introduzidos pela prosperidade económica e pela segurança social de cinco décadas originaram uma ideia de cidadania fundada em propósitos opostos. Por um lado, os cidadãos europeus discordam cadavez mais em relação a valores fundamentais e por isso desejam viver em liberdade, sem qualquer interferência do Estado, para decidir aspectos importantes da sua vida. Por outro lado, acreditam numa noção radical de igualdade que os leva a exigir ao Estado o cumprimento de um número cada vez mais elevado de direitos e benefícios.
A crise económica da Europa vai obrigar, mesmo contra a vontade de quase todos, a resolver esta tensão. Os europeus terão que decidir se querem ser cidadãos de sociedades com instituições cuja finalidade é a preservação da liberdade individual, ou se querem definir a identidade política em termos de benefícios e de interesses, onde o Estado é simultaneamente umaliado e uma ameaça.
O que está hoje em questão na Europa, desde as ruas de Paris até às discussões dos Conselhos Europeus, é a redefinição do conceito de cidadania nos países europeus.
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João Marques de Almeida é director do Instituto da Defesa Nacional e assina esta coluna semanalmente à segunda-feira no "Diário Económico".