quinta-feira, junho 30, 2005

A manta de Salazar e a clandestinidade de Cunhal


ANTÓNIO PIRES DE LIMA

"Autoridade e liberdade são dois conceitos incompatíveis. Onde existe uma não pode existir a outra."
"Salazar o homem e a sua obra"


Reza a história - não sei se inteiramente verdadeira - que sempre que recebia convidados à noite na residência oficial de Verão, o Dr. Salazar - fizesse frio ou calor -, tinha por hábito oferecer uma manta grossa para lhes cobrir as pernas. Houve um dia, porém, que um convidado mais ousado recusou a dita manta, argumentando que não fazia frio para tanto aquecimento. "Ponha, ponha, que pondo a manta, o frio chega logo a seguir", terá replicado Salazar.

Mais de 30 anos passados sobre o 25 de Abril, a manta de Salazar parece ainda cobrir as consciências e os costumes em Portugal, como se vivessemos todos em regime de liberdade condicionada. À esquerda e à direita, persiste uma insustentável desconfiança da iniciativa privada e um inexplicável temor à liberdade de escolha.

É longa a tradição autocrática à direita em Portugal, desde o absolutismo miguelista no século XIX ao consulado do Dr. Salazar, que durou metade do século XX. Que ordem de valores prevaleciam, nessas "direitas" de então? Deus, Pátria, Autoridade e a certeza de que "quem não é por nós é contra nós".
Na economia, condicionamento industrial, porque a concorrência é uma ameaça e não um estímulo.
O liberalismo nasceu em Portugal por oposição ao absolutismo e, ainda hoje, não é fácil encontrar um português de direita, educado no Estado Novo, que defenda valores liberais.

À esquerda, o amor à liberdade sempre foi muito apregoado e pouco praticado. A esquerda da I República era profundamente intolerante. A do PREC abominava a liberdade. Melhor testemunho não nos podia deixar aquele que foi o exemplo de vida do Dr. Cunhal: quem vive mais de trinta anos de democracia em desnecessária semiclandestinidade, não só não ama, como não sabe viver em liberdade. Quanto mais respeitar a dos outros.

Sobra a esquerda democrática continua hoje a refugiar-se em mitos e chavões politicamente correctos, para evitar o debate aberto em múltiplas frentes (segurança, estado social, etc.). Socorre-se de um texto constitucional datado, que é em si mesmo um programa político, para limitar a margem de governação e a liberdade de escolha individual.

Portugal só dará o salto para uma sociedade moderna e de qualidade na medida em que a nossa democracia baseie os seus pilares na liberdade e na responsabilidade do indivíduo, tratando cada Pessoa como verdadeiro adulto e transferindo poder do Estado para os cidadãos. O Estado Social burocratizado que nos impõe a Constituição é profundamente irresponsável. Dar poder às pessoas e empresas é pô-las a pagar os impostos estritamente indispensáveis à organização do Estado, porque é da acumulação de riqueza na esfera privada que advêm dinâmica social, maior poupança, bom investimento e desenvolvimento económico.

Trinta anos depois da Revolução, talvez não existisse maior homenagem que os democratas pudessem prestar ao 25 de Abril que reescreverem, sem preconceitos, a Constituição, para que esta possa garantir o bem que mais escasseia a liberdade de escolha, nomeadamente aos mais pobres, que são escravos das escolhas do Estado. A cada indivíduo, a cada família, deve corresponder o direito de escolha da escola, do hospital, do sistema de segurança social. Esse é o verdadeiro direito à educação, à saúde e à segurança social que urge defender.

Espero bem que, nestes tempos de ciclo socialista, a direita saiba encontrar um discurso que rompa preconceitos e lhe possa destinar um futuro interessante. Uma direita que ame a liberdade. Uma direita humanista, respeitadora do direito à diferença nas questões éticas, de moral e de costumes, que preze a dignidade de cada pessoa e respeite opções individuais. Uma direita que acredite na iniciativa, na concorrência e estimule a capacidade de empreender.

Em suma: uma direita moderna e de marcada inspiração liberal. Portugal precisa de uma direita assim. Vamos fazer por isso?


[Publicado no "Diário de Notícias" de hoje]

9 Comments:

Blogger Nuno M Almeida said...

Muitos parabéns por tão estimável iniciativa.
Enquanto a Esquerda governa e outros não são nem "peixe nem carne", preferindo assentar no oportunismo camaleónico vazio de ocasião, alguns sectores de Direita, repensam caminhos e opções.
Um projecto liberal a sério? Finalmente?

Nuno M Almeida
http://artedeopinar.weblog.com.pt/

11:49 da tarde  
Blogger Pedro Gomes Sanches said...

Entendamo-nos, caro Pires de Lima,

Um projecto político liberal tem, necessariamente, que ser um projecto laico; um projecto sem venerações, explícitas ou implícitas, a confissões religiosas.

Um projecto político liberal defende intransigentemente a liberdade do indivíduo e reduz a intervenção do Estado na esfera privada ao mínimo necessário. É um projecto que reconhece o direito à morte (eutanásia) a quem o queira reivindicar para si. É um projecto que reconhece o primado da razão e que, em matérias como a “vida”, admite, tolerantemente, “leituras e fronteiras” diferentes.

Um projecto político liberal é, essencialmente, um projecto de abertura ao outro e compadece-se pouco com princípios de controlo de fronteiras demasiado musculados.

E isto tudo sem embargo de um liberal poder ser profundamente religioso e de ser contra a prática do aborto e da eutanásia, mas o que não pode é, em coerência, e enquanto liberal, defender como ordem do Estado estas suas íntimas convicções; sob pena de deixar de ser liberal para passar a ser democrata-cristão ou outra coisa qualquer.

Ora, caro António Pires de Lima, o que tenho alguma dificuldade em compreender (o rui do Blasfémias, aparentemente, também…) é como é que um manifesto Liberal, como este, é compatível com uma tão recente condução dos destinos do CDS/PP aos valores mais gratos da direita que se cobre com a manta do Salazar*.

Terça-feira, dia 5, procurarei estar no Nicola para ouvir a resposta.

________________________________
* - E note que não me refiro, exactamente, à última campanha do CDS/PP. Mas a todo o período anterior a ela. Estou aliás em crer que quem votou CDS nas últimas eleições não foi exactamente quem havia votado nas eleições anteriores. E a razão disso está, iniludivelmente, no discurso permanentemente errático que o CDS tem tido e que, também por isso, não permite a consolidação de um eleitorado liberal.

in http://epicurtas.blogspot.com

11:46 da manhã  
Blogger Reisoca said...

A Minha Vénia, Dr. Pires de Lima!

É por estas e por outras k eu ainda não consigo entender pk foram escolher o "Outro"!

12:53 da tarde  
Blogger Ricardo said...

Conheci ontem este blog e li-o ontem de ponta a ponta. Concordo com quase tudo. Só discordo do post relativo a política externa. E, sim!, é preciso ser muito corajoso para se ser liberal em Portugal. Não ser de esquerda já é complicado, ser de direita sem ser conservador nem democrata-cristão ainda mais complicado é.

Ser liberal em Portugal é o modo mais intenso de se ser intelectualmente rebelde. E não há nada mais ortodoxo e intelectualmente entediante que defender a moralidade politicamente correcta da esquerda.

1:10 da tarde  
Blogger Ricardo said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

1:10 da tarde  
Blogger odete pinto said...

Assim escrito até parece aliciante.
1. Eu, que eduquei 2 filhos sozinha e descontei muito durante 40 anos, também teria gostado de escolher a escola para os meus 3 netos quando o meu filho, eng. informático, ficou desempregado por via daquelas falências provocadas por compras de bens de luxo, enfim, eufemisticamente, maravilhosas. Como deixou de poder pagar o colégio privado, perguntei como é que podia aceder ao apoio do estado para esse fim. Depois de muito insistir, lá me disseram que esse apoio só era concedido ao fim de quase 1 ano e portanto, só era aproveitado por pessoas com profissões liberais, que pudessem declarar no IRS o salário mínimo. Como podiam pagar a mensalidade ao colégio, no fim do ano recebiam o subsídio. Perfeito !

2.Eu também queria escolher o hospital, clínica, etc., mas infelizmente tenho que recorrer ao SNS. E indigno-me. Muito!

Ora "pumpkin".

7:25 da tarde  
Blogger Salvador said...

Parabéns pela iniciativa.

Mas, caro amigo Sanches:

isso significa que um liberal tem ser laico ou apenas o projecto político?

1:10 da manhã  
Blogger Pedro Gomes Sanches said...

caro Salvador,

um liberal não tem que ser laico. mas o seu projecto político, para o Estado, deve ser laico. assim, posições como ABORTO:NUNCA ou EUTANÁSIA:NÃO, porque são atentatórias do "Direito à Vida", insctrita na doutrina social da igreja, dificilmente são razoáveis num projecto liberal.

no meu caso, por exemplo, sou, evidentemente, contra o aborto. mas não posso é impedir que alguém às 9 semanas, por razões que são suas, possa interromper a gravidez. e como liberal não posso admitir que esse mesmo alguém venha a ser julgado em tribunal por ter interrompido essa mesma gravidez. é porque caso o faça, caso defenda a sua proibição e penalização, e caso o faça, por exemplo, em nome da doutrina social da igreja, então sou um democrata-cristão e não um liberal.

note que nada me move contra a igreja ou a sua doutrina social, o que me parece é que, e uma vez que estamos a falar de Liberalismo, a prática individual das duas coisas não é conflituante mas a sua defesa para os princípios do Estado é...

2:20 da tarde  
Blogger Diogo Moura said...

Realmente, este homem é um SENHOR! Cada vez o admiro mais e muito mais. É de si que todos precisamos, de uma lufada de ar fresco, mas saudável

5:13 da tarde  

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