quarta-feira, julho 20, 2005

O Estado dos funcionários

Rui Ramos

O funcionalismo português é na Europa, relativamente, o mais caro e o que pior serve o público. As greves e manifestações dos empregados do Estado têm indignado muita gente. De facto, os 700 mil funcionários não poderiam ter escolhido pior altura para fazer guerra aos contribuintes. É que a discussão do défice chamou a atenção geral para as provas de que o funcionalismo português é na Europa, relativamente, o mais caro e o que pior serve o público. Perante a baixa classificação dos alunos em testes internacionais, ou a demora dos procedimentos judiciais, a utilidade de um funcionalismo que custa o equivalente a 15 % do PIB, quando a média europeia é de 10 %, parece naturalmente questionável. O Estado Social português é, em termos europeus, sobretudo um Estado de Funcionários. Segundo o dr. Medina Carreira, é aquele em que os vencimentos do funcionalismo absorvem maior percentagem dos impostos (45 %), e o único que gasta mais em vencimentos do que em transferências sociais. É ainda um Estado voltado sobretudo para dentro de si próprio. Em 2004, o Conselho Coordenador do Sistema de Controlo Interno da Administração Financeira do Estado revelou que apenas 40 % da actividade dos funcionários consiste em serviços aos cidadãos e às empresas. 51 % é burocracia interna, e 9 % simplesmente inútil.Tudo isto causa imenso alarido justiceiro. Mas muito provavelmente, a perspectiva do “serviço público” é uma maneira errada de ver a questão. Porque lhe pagamos, exigimos ao Estado que nos sirva, sem nos perguntarmos se é para isso que ele foi feito. E a suspeita é que, em grande medida, não foi. O Estado que conhecemos começou, no século XIX, como um instrumento de revolução social. Políticos progressistas usaram-no para abolir tradições e estabelecer as infraestruturas necessárias ao desenvolvimento, através da iniciativa privada, de uma base social de apoio ao regime constitucional (a chamada “classe média”). Por volta de 1900, porém, os progressistas começaram a ficar impacientes com a iniciativa privada. Um professor de Coimbra, Marnoco e Sousa, sugeriu então que essa base social poderia ser directamente criada pelo Estado, através do emprego público. Foi a receita que acabaram por seguir os líderes da I República: para “consolidar” o regime, duplicaram o número de funcionários da administração central entre 1919 e 1926. Uma duplicação dessas, num período curto, aconteceu outra vez no século XX: foi entre 1976 e 1983, para “consolidar” a actual democracia. O Estado português não engordou em função dos serviços públicos, mas da necessidade de criar classes sociais de apoio a regimes políticos.Na crítica aos funcionários como uma “classe privilegiada” ecoam curiosamente os argumentos outrora usados contra a nobreza e o clero da antiga monarquia. Não é um eco despropositado. Os actuais e os antigos privilegiados têm em comum o facto de serem classes que vivem de um rendimento extraído pelo poder público, e justificado por uma ideologia de “serviço”: militar e “espiritual” num caso, “social” no outro. Os funcionários prestam serviços úteis? Sem dúvida, tal como a nobreza e o clero, de acordo com os padrões do seu tempo. Mas resta saber se o desempenho por funcionários públicos será, em todos os casos, a maneira mais eficiente de dispor desses serviços. A verdade é que, ao contemplarmos o actual Estado português, não estamos perante uma empresa de serviços, mas uma experimentação social em grande escala. Não esperem, por isso, que emagreça pacificamente, nem que faça bem o que não foi feito para fazer. E não se admirem que, como a antiga nobreza e o clero, os funcionários resistam à extinção dos seus privilégios.

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Rui Ramos é historiador, professor universitário e assina esta coluna semanalmente à quarta-feira no "Diário Económico"