quinta-feira, outubro 27, 2005

Leituras liberais

Contra a Parede

LUCIANO AMARAL

Foi nos anos 80 do século XX que a companhia Nintendo criou Super Mario, um jogo de computador em que o herói (Super Mario, precisamente), um bonequinho simpático ostentando um bigode entre Ali (o Químico) e um motorista de táxi, salta e se desentranha em múltiplas tarefas complicadas. No jogo, há circunstâncias em que Mario não consegue superar os obstáculos e fica preso, a correr freneticamente contra a parede. Agora, um conjunto de simpatizantes do candidato Mário Soares criou um blogue ao qual deu, justamente, o nome de Super Mário. Super Mário, o blogue, oferece a maior parte do tempo um espectáculo parecido com o do pequeno herói bigodudo embatendo sucessivamente contra a parede. Mas o problema não é apenas do blogue, é também de Soares e de todos os seus apoiantes. E o problema é a absoluta incapacidade para apresentarem qualquer argumento estruturado em favor da sua candidatura.

Esta incapacidade tem origem no facto de a esquerda estar no poder. E a esquerda está no poder de forma dupla e paradoxal. Ela começa por estar no poder num sentido estrutural o nosso regime é uma social-democracia, o que é uma ideia de esquerda. Ora, a esquerda, que histo-ricamente sempre gostou de se apresentar como o partido da transformação do mundo, não tem hoje (depois do espectáculo de opressão e miséria do socialismo real) qualquer alternativa para oferecer à social- -democracia. Só que a esquerda está também no poder num sentido mais conjuntural, através do actual Governo, e é daqui que nasce o paradoxo. Porque este Governo tem-se entretido a dar umas valentes machadadas na dita social-democracia. Perante a clamorosa incapacidade para continuar o curso seguido até agora, o Governo passou a aplicar um receituário que anteriormente classificaria como próprio do "capitalismo selvagem". O paradoxo é, portanto, o de uma esquerda que, perante a inescapável realidade da crise, utiliza os métodos que a direita usaria para a enfrentar. Lembra um pouco o escorpião, que, quando rodeado de fogo, se suicida picando-se a si próprio com a cauda venenosa.

Isto deixa a esquerda sem argumentos razoáveis contra Cavaco. Afinal, ela não pode acusá-lo de querer apoiar políticas "neoliberais", quando é ela mesma que as aplica a si própria. Ela sabe perfeitamente que Cavaco presidente seria o primeiro a suportá-la na tarefa em que afirma ter embarcado agora. Incapaz de utilizar estes argumentos, resta-lhe o velho bordão do autoritarismo genético da direita Cavaco representaria um "messianismo re- vanchista", reclamando a "subversão do regime constitucional", senão mesmo do regime democrático. Esta acusação aparece sob duas formas. Uma é a forma palerma, que consiste em estabelecer paralelos toscos entre Cavaco e Salazar. É uma linha que está presente em muitos dos pequenos textos do blogue Super Mário. Por vezes, juntam-se ainda aqui umas larachas frouxas, a resvalar para a snobeira lisboeta, sobre a vivenda Mariani e a origem social popular de Cavaco. A outra forma é um bocadinho mais esforçada e aparece com uns tintes de constitucionalismo, consistindo em acusar Cavaco de querer "presidencializar" o regime. Também esta não merece mais do que um ou dois comentários.

O nosso regime é semipresidencial, e no âmbito desse princípio cabe ao Presidente influenciar a sociedade e a governação no sentido que melhor entender. Para isso, o Presidente possui vários meios os discursos, as visitas, as reuniões com o Governo e os partidos, o poder de veto, o poder de dissolução do Parlamento ou de demissão do Governo. Sobre isto pouco há a dizer: Cavaco, se eleito, não terá mais nem menos poderes do que os seus antecessores. Mas há outro problema, que tem que ver com a crise e a sucessiva incapacidade das diversas situações governamentais (de direita e de esquerda, de coligação ou maioria absoluta monopartidária) em resolvê-la. Não é possível negar que o papel do Presidente se torna mais importante nestas circunstâncias, porque ele vai ter de apoiar o Governo num período tormentoso e porque também ele vai ter de dar sugestões para a ultrapassagem da crise. Admitamos que o ambiente convida a um maior intervencionismo presidencial. Mesmo assim, o desafio colocar-se-ia da mesma maneira a um Presidente Cavaco e a um Presidente Soares. Perante esta situação, os eleitores apenas têm de colocar a si próprios a pergunta: qual deles, com os seus princípios ideológicos e características pessoais, é a pessoa mais indicada para lidar com ela, usando os poderes do Presidente? A resposta é, evidentemente, diferente conforme o eleitor. Como é óbvio, Cavaco tem uma ideologia diferente de Soares e a esquerda não pode esperar que abdique dela quando entrar em Belém. Mas em matéria de intervencionismo presidencial o potencial é idêntico entre ambos. A conversa da "presidencialização" aplicada apenas a Cavaco não passa de um papão para quem não quer discutir ideias. Mas, lá está, é aí que reside o problema da esquerda: é que, neste momento, ela não tem nenhuma.

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Luciano Amaral é professor universitário, promotor das "Noites à Direita" e escreve todas as terças-feiras no "Diário de Notícias"

segunda-feira, outubro 24, 2005

Leituras Liberais

Das origens à reforma

JOÃO MARQUES DE ALMEIDA

Numa altura em que se discute, abundantemente, o “modelo social europeu”, não será inútil revisitar as suas origens históricas. O primeiro ponto que. convém, desde logo, combater é a ideia de que o dito modelo é um conceito económico. É, sobretudo, uma concepção política sobre o modo de organizar a sociedade, os poderes do Estado, e as liberdades individuais. Além disso, como qualquer análise histórica demonstra, surgiu num contexto político marcado por fortes debates ideológicos.
Em primeiro lugar, a ideia de um Estado social e democrata apareceu para combater o sucesso político, económico e social dos regimes fascistas e nazis. Hoje já está esquecido, mas durante os anos de 1930, o “modelo social nazi e fascista” era visto por muitos na Europa como um sistema “vitorioso” e “com futuro”. Em 1941, o então primeiro-ministro da Dinamarca, Thorvald Stauning, que estava longe de ser um líder fascista, reconhecia os méritos “da visão alemã para a nova ordem na Europa, onde uma economia planeada terá grandes vantagens em relação à ausência de planeamento central que caracteriza o egoísmo liberal”. Foi o lado negro e violento do regime nazi, que se foi manifestando com a guerra, que acabou com as esperanças de muitos europeus. No entanto, mesmo com a Alemanha derrotada, os líderes europeus perceberam que a legitimidade futura de qualquer sistema político passava pela capacidade de ultrapassar as “conquistas sociais” do nazismo. No famoso Relatório Beveridge, o documento constituinte do “modelo social” britânico, afirmava-se sem qualquer hesitação que seria fundamental construir uma “Estado providência democrático” contra o “Estado providência racial” dos nazis.
O reconhecimento do “sucesso social” do regime nazi resultava, em larga medida, do espírito anti-capitalista que a crise económica dos anos de 1930 tinha espalhado por toda a Europa. Não nos podemos esquecer que o anti-capitalismo era um dos traços definidores dos líderes nazis e fascistas. Em 1933, Mussolini gabava-se de ter “enterrado o liberalismo económico”. Na mesma altura, Goebbels orgulhava-se do “socialismo alemão, um socialismo dos fortes e dos heróis contra o capitalismo dos fracos e dos corruptos”. O ódio ao capitalismo e ao liberalismo levou mesmo alguns dirigentes das esquerdas democráticas a elogiarem a dimensão social dos sistemas fascista e nazi. Em 1945, a percepção do sucesso social e económico de outro sistema totalitário, o socialismo soviético, reforçou ainda mais a desconfiança do capitalismo.Após a guerra, um pouco por toda a Europa ocidental, encontrava-se frequentemente, entre as elites políticas, elogios à União Soviética. Foram os tempos do entusiasmo pelas “democracias populares” contra as “democracias burguesas”. Mais uma vez, criticava-se a falta de liberdade política na União Soviética mas admirava-se as conquistas sociais do “socialismo real”. E, antevendo-se a natureza ideológica do conflito bipolar que iria marcar o meio século seguinte, reconhecia-se que a credibilidade das democracias ocidentais exigia um melhor desempenho social do que aquele oferecido por Moscovo. O desejo de derrotar as conquistas sociais dos dois sistemas totalitários, primeiro o nazi e depois o soviético, e a profunda desconfiança pelo capitalismo, em última análise, justificam o “modelo social europeu”.
O que é verdadeiramente espantoso quando observamos os actuais debates ideológicos na Europa é o facto do espírito anti-capitalista ter sobrevivido ao nazismo e ao colapso da União Soviética. Convém recordar, contudo, que o triunfo da Guerra Fria deve-se mais ao sucesso do capitalismo liberal ocidental do que às virtudes do “modelo social europeu”.
Quando os habitantes de Berlim Leste derrubaram o Muro não vinham à procura de subsídios de desemprego nem de um Estado protector, mas de riqueza e, sobretudo, de liberdade política e económica. Neste sentido, a reforma do “modelo social europeu” é o passo que falta para concluir o fim da Guerra Fria.
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João Marques de Almeida é director do Instituto de Defesa Nacional e assina esta coluna semanalmente à segunda-feira no "Diário Económico".

sexta-feira, outubro 21, 2005

Leitura recomendada

INVESTMENT & PENSIONS EUROPE
OCTOBER 2005

PENSIONS AND POLITICS: PORTUGAL
Trying to get some space

Reforming a pensions system is difficult when politicians are too timid to admit to problems and the population expects to state to provide, George Coats finds

During the campaign for February’s general election the then opposition Socialist Party (PS) promised to cut taxes, raise public sector wages and increase pensions. The governing right-of-centre Social Democrat Party (PSD) was offering fiscal stringency. For a majority of the electorate the choice seemed obvious, and PS leader José Sócrates emerged as prime minister. But in light of expectations of a 2005 budget deficit of 6.3% of GDP, since coming into office the government has increased VAT, reduced the rightto early retirement and modified the very favourable civil service pension plan to bring it into line with the rest of the state pension system.
The government says the failure to deliver on its pre-election pledges is due to the previous administration’s opaqueness on the extent of the country’s fiscal crisis. For the PSD it is a cynical U-turn on populist and opportunistic promises.
But while the Socialists’ programme was blatantly populist – and with Portugal having been subjected to a barrage of very public EU criticism for breaching ceilings for its budget deficit-to-GDP ratio the party would have had to have been suffering from a severe attention deficit not to realise the country’s dire fiscal situation – on pensions it just might have a point.
The PSD government had undertaken pension reforms. In 2002 it shifted the basis of calculation for state pensions for people who retire after 2017 to a full career-average income
realigned for inflation from the average of the 10 best years over an employee’s last 15 years indexed to inflation. And in 2003 it introduced tax incentives for those investing in third-pillar savings products.
But it did not portray the changes as part of a strategy to fend off a looming crisis; rather they were presented as a solution. The result is that the Portuguese public is largely unaware of the pension problem, has not realised the implications of the PSD alterations and continues to complacently expect the state to provide a retirement income that is the equivalent of 80% of a salary.
And the impact of the changes will be dramatic. The 80% figure will hold, being based on 2% of a salary over 40 years of service, but the base figure will be substantially lower. “We estimate
that the new law will pay around 60% of a last salary, so people will receive less,” says Maria Isabel Semião, director at BPI Pensões, the pension fund manager of the BPI banking group.
Nevertheless, the changes will not be enough. The Portuguese economy has undergone dramatic transformations over the past 70 years, moving in the mid-1970s from a corporatist fascist model under a fascistic Salazar dictatorship, through a period of widespread nationalisations by farleft military-backed governments to the current mixed economy presided over by alternating centre-left and centre-right administrations. But the pension system and public perceptions have not kept pace.
“People have a paternalistic relationship with the state,” says Leonardo Mathias, director general at Schroders in Lisbon. “One can argue that this was due to 50 years of a very strong state under Salazar and afterwards with the revolution.”
Francisco van Zeller, president of the Confederation of Portuguese Industry (CIP), agrees. “When socialism took over after the fall of the dictatorship they thought that the state should provide everything – pensions, jobs, all type of security and healthcare,” he says.
“The average person who does not read the economic press will probably be unaware that there is a pensions crisis,” says Luis Veloso, director of Energias de Portugal (EDP) pension fund. “There is very little coverage of the issue on the TV, although there is an increasing debate on the state of the economy, pointing out that we are in a difficult situation and there is a lack of discipline in the public accounts.”
“Not a single minister has come out and said that this is a problem,” says Leonardo Mathias. “And it’s not something remote, on current trends a generation issue will become evident sometime between 2015 and 2017. But with high deficits, infrastructural requirements, no growth in exports, investments and services, and a dependency on domestic consumption there is really no room to spend money on pensions. Consequently, unless we change the whole system the alternatives are raising the age of retirement or opening the doors to immigration.”
However, there are no indications that the political will exists to change the whole system. “The Socialist Party mentality is to keep the state as the main provider,” notes one observer. “And they don’t create space for a supplementary system.”
“Our main goal was to pursue the World Bank recommendations and establish a multi-pillar system in Portugal,” says Miguel Frasquilho, a PSD parliamentarian and a former secretary of state for treasury and finance. “We passed the laws but unfortunately we didn’t apply the measures. Maybe we lacked the courage.”
Frasquilho served in the government of former PSD premier and current European Commission president José Manuel Durao Barroso. “I think that part of the problem was that we opened up too many fronts, trying to reduce the budget deficit, introduce a justice bill, reform the residential rental market and the labour market as well as reform social security,” Frasquilho says. “The ideas were good but the results were poor, and we did not manage to implement
them.”
The legislation introducing a career-average calculation also created the possibility for those whose income exceeded a pre-determined multiple of the minimum wage of opting out of the PAYG allocation and putting the money into thirdpillar schemes. “At the time there was a discussion of supplementary provision and whether second pillar contributions should be within the public or private sector, recalls Paula Bernardo of the UGT trade union confederation. “So the law also included the possibility for people to put a part of their public contributions into a complementary system.
However, the enabling regulations were not put into effect” before the government fell. But before it fell the PSD withdrew the third-pillar tax incentives in response to fiscal pressure. And experience shows that tax incentives work in Portugal. “Most company plans came into existence in the late 1980s because between 1985 and 1991 they drew huge fiscal benefits,” says Mathias. “But when the fiscal benefits stabilised they fell away.”
Only 1,000-2,000 of the 200,000 companies in Portugal offer secondpillar pensions to their employees, according to Watson Wyatt in Lisbon.
Second-pillar schemes have assets in the region of €15-16bn, or 10-12% of GDP. “Of this, 50-60% belongs to banks’ pension funds which since the fall of the dictatorship in the mid-1970s have had their own pensions structure,” says Bernie Thomas of Watsons. “Bank employees do not belong to the social security system and so their pension provision in effect provides a combined first and second pillar provision. So true second-pillar pension plans that act as top ups to the state pension have assets that amount to about €5bn.”
And there is no movement to increase the number of plans, says Van Zeller. “You don’t hear about such schemes,” he says. “If you look at social responsibility, which is a fashionable thing to do now, you find mention of charities, the environment, health protection at work and
various other matters, but you see nothing about pensions.”
He highlights another problem, Portugal’s recent tradition of revolving-door governments. “We have changed welfare minister four times in the last three years,” Van Zeller says.
“I spoke with the first three, but when the fourth came in I decided to wait to see whether he lasts more than six months before making another initiative because I’m tired of raising the problem again and again and each time I go there it’s always new. There appeared to be no institutional memory or continuity.”
And then there is the electoral calendar, with Portugal holding regional elections later this
month and a presidential election in January, both of which are seen as referendums on the government’s performance. “Electoral cycles are very short,” Van Zeller notes.
“Governments don’t have time to make even medium-term policies, let alone to think long term. They want to do things that will show visible results in two years and we know what they have to do on pensions will not have short-term visible results. Something has to be done but they are so afraid of telling the truth.”
However, Van Zeller is a member of a tripartite forum, the social economic council (CES), that brings together four employer groups, two trade union confederations, and the ministers
of finance, economy and labour, where issues can be hammered out behind closed doors. “The pensions issue is one for the CES, not for parliament,” says Van Zeller. “That’s where we say how things really are, we tell the truth and we bring our souls to the table.”
The trade unions also have proposals. “We want to explore the introduction of pension funds through collective bargaining as we see in the majority of other European countries,” says Bernardo. “We have already told the government that it would be in the national interest to
implement fiscal incentives for pension funds created through collective bargaining. In our economy most enterprises are too small to have a pension fund, but we could at a sectoral level. And in 2003 we designed a model contract that could be used by all collective bargaining negotiators.”
But collective bargaining negotiations could be improved. “We are having difficulties negotiating with the employers’ groups on these pension funds,” Bernardo adds.
“I have not detected the same level of preoccupation with private sector pensions that we have in the unions because they have always seen it as the state’s responsibility,” says Van Zeller. “But I suppose we could find arrangements for complementary plans with one of the two major union confederations. But to do this we need the support of the tax authorities.” Clearly, it’s time to bring more souls to the table.

In "INVESTMENT & PENSIONS EUROPE"/OCTOBER 2005

sexta-feira, outubro 14, 2005

"Noites à Direita" seguem dentro de momentos

Aviso a todos os liberais: a próxima sessão das "Noites à Direita", subordinada ao tema "A Direita e a Economia", com a presença assegurada de António Borges, já não vai ser no próximo dia 18 de Outubro. Brevemente indicaremos a nova data e o local. Vai valer a pena esperar. Novas iniciativas dos promotores das "Noites à Direita" serão também anunciadas.


Os promotores das "Noites à Direita.projecto liberal"
António Pires de Lima, Filipa Correia Pinto, Leonardo Mathias, Luciano Amaral, Manuel Falcão, Paulo Pinto Mascarenhas, Pedro Lomba e Rui Ramos.

quarta-feira, outubro 12, 2005

Leituras liberais

A democracia vista de baixo

RUI RAMOS

O mal não está nas votações do “povinho”, mas no colapso do Estado de Direito e num sistema político incapaz. Nem sempre é fácil fazer da política uma coisa interessante. Foi o que se viu com estas últimas eleições de câmaras e freguesias. Para começar, como logo nos explicaram os entendidos, não era uma eleição, mas milhares de eleições, com dezenas de milhares de candidatos. Não se podia “generalizar”, nem sequer comparar as votações dos partidos, por causa das coligações. Depois, os nossos líderes de partido e opinião, com um ar muito sério, decidiram autorizar o eng. Sócrates a não tirar dos resultados conclusões tão dramáticas como o eng. Guterres há quatro anos. Correu-se assim o risco de ver as “autárquicas” desaparecerem do radar dos jornais e televisões. Surgiu então um condimento salvador: três ou quatro candidatos que tinham tido problemas com a polícia, e ao mesmo tempo com os líderes dos seus partidos. Já que não serviriam para atormentar o eng. Sócrates, as eleições iam servir para exercer indignação. Com maus modos, os líderes de partido e opinião exigiram que as populações dos concelhos de Gondomar, Oeiras, Felgueiras e Amarante fizessem o que as polícias e os tribunais não tinham sido capazes de fazer.
Houve nesta guerra santa contra os “arguidos” uma imensa hipocrisia. A campanha, mais do que de certezas judiciais, viveu dos preconceitos do centralismo iluminado contra o chamado “poder autárquico”. Em discursatas oficiais, é da praxe louvar o tal “poder” como um “pilar” da democracia. No comentário e na decisão política, pelo contrário, esse “poder” é invariavelmente tratado como o leproso do regime. Basta ouvir os nossos líderes falar da limitação de mandatos, das dívidas das autarquias, ou da degradação da paisagem. O que nos mostram é um país entregue a um feudalismo demagógico, em conluio com construtores civis e clubes de futebol. Tudo, obviamente, explicado pela boçalidade daquele género de povo que não costuma ir ao dentista e bate nos líderes nacionais dos partidos, quando estes os visitam em peregrinação justiceira. Vista de baixo, a democracia portuguesa consistiria apenas na exibição impúdica do “atraso” provinciano. Não seria melhor ficarmos todos às ordens da gente limpa e cosmopolita dos Ministérios de Lisboa?
No meio desta indignação centralista, muita coisa escapou. Ninguém, por exemplo, questionou um sistema político que esvazia os municípios de recursos e responsabilidades, empurrando os autarcas para o papel de agentes de “cunhas” em Lisboa, ou tribunos dos descamisados da periferia. Acima de tudo, pouca gente reparou na verdadeira explicação do fenómeno dos “candidatos arguidos”: um sistema judicial incapaz, há muito tempo, de incriminar ou de ilibar quem quer que seja. Basta lembrar os processos contra ministros e deputados desde há vinte anos. Quantos acabaram num esclarecimento definitivo? Quantos não fizeram suspeitar de que a separação de poderes não vai, frequentemente, além do papel? Há dois anos, a publicação das escutas judiciais aos líderes de um dos nossos maiores partido revelou aos portugueses o que ex-ministros verdadeiramente pensavam da justiça. Têm as populações de acreditar naquilo em que a nossa classe política já não acredita? Porquê, nesse caso, pedir-lhes que reneguem quem construiu piscinas e lhes serviu bifanas – só por causa de umas diligências judiciárias destinadas (segundo a tradição) a permanecer inconclusivas? O mal não está nas votações do “povinho”, mas no colapso do Estado de Direito, e num sistema político incapaz de gerar responsabilidades. É por aí que esta democracia pode resvalar para qualquer coisa de ignóbil e insustentável.

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Rui Ramos é historiador, professor universitário e um dos promotores das "Noites à Direita". Assina esta coluna semanalmente à quarta-feira no "Diário Económico".

segunda-feira, outubro 03, 2005

Leituras liberais

New labour’ ou ‘new liberals’?

JOÃO MARQUES DE ALMEIDA

O discurso de Tony Blair à Convenção do Partido Trabalhista constituiu uma intervenção notável. Quando se ouve ou lê um discurso, com um simbolismo político importante, de um primeiro-ministro, um dos sinais essenciais diz respeito à capacidade de liderança. Numa sociedade de comunicação, é fundamental demonstrar a liderança política através da linguagem e do discurso público. Quando o interveniente em causa é o primeiro-ministro britânico, o interesse aumenta. Não só devido à reputação das suas qualidades de liderança, de resto reconhecidas por muitos por toda a Europa, mesmo entre os seus adversários políticos. Mas também pelo peso e a importância da Grã-Bretanha na política europeia e mundial.
A carreira política de Blair tem sido marcada por sucessivos exemplos de uma forte liderança. Antes de mais, foi capaz de alterar a natureza do partido trabalhista, acabando com a influência de dogmas ideológicos ultrapassados. Neste sentido, tem imposto políticas económicas, sociais e de educação, impensáveis no mundo trabalhista britânico há uma década. Há, no entanto, três episódios que revelam a qualidade da sua liderança: a questão da Irlanda do Norte, a guerra do Iraque e a resposta aos ataques terroristas de 7 de Julho. No primeiro caso, desde o Acordo inicial de 1998 (’Good Friday Agreement’) até à deposição de armas por parte do IRA, na semana passada, Blair demonstrou uma paciência e uma determinação impressionantes. Antes dele, muitos líderes britânicos empenharam-se na resolução do conflito irlandês; todos fracassaram. Basta que ele tenha sucesso, para já não sair da História britânica. Em relação ao Iraque, apesar de erros cometidos, a sua coragem foi admirável. Quantos líderes políticos conseguiriam participar numa guerra, que consideram justa (mesmo que isso seja discutível), com a sua população dividida, e com grande parte do seu partido a opor-se? Por fim, a reacção aos ataques terroristas do passado mês de Julho foi exemplar, no equilíbrio entre, por um lado, a raiva e a firmeza e, por outro lado, a abertura e o apoio à população muçulmana britânica.
No seu último discurso, Blair revela a sua capacidade de liderança nas ideias defendidas. Há dois aspectos impressionantes nas intervenções do Primeiro Ministro britânico. Em primeiro lugar, a ousadia e a frontalidade do seu discurso. Blair não tem medo das palavras e das expressões fortes, e não se rende aos lugares comuns, nem ao politicamente correcto. Recomendo um exercício interessante ao leitor. Compare a intervenção, na semana passada em Lisboa, do filósofo francês, Bernard Henri Levy, um espírito livre e sem responsabilidades políticas, com o discurso de Blair. Descobre-se a mesma liberdade de pensamento, o que é extraordinário para um líder político. Em segundo lugar, a capacidade de persuasão do líder trabalhista não pára de espantar. Sigo há anos as intervenções de Blair nas conferências do seu partido e estou sempre à espera do dia em que o entusiasmo da audiência morreu. Esse dia ainda não chegou. A maioria dos delegados trabalhistas ataca a guerra do Iraque, critica a América e Bush, amaldiçoa o “neo-liberalismo” e, entre dentes, acusa Blair. O primeiro-ministro sobe ao palco, justifica a sua intervenção no Iraque, defende a sua aliança com Washington, assume o seu liberalismo, e recebe ovações da audiência. Uma das qualidades mais marcantes da liderança política é fazer os outros acreditar naquilo que antes discordavam. Por fim, para aqueles que ainda não desistiram da agenda liberal, ouvir um líder político defender o liberalismo, no meio de algum histerismo anti-liberal europeu, permite manter alguma esperança na “boa velha Europa”.

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João Marques de Almeida é director do Instituto de Defesa Nacional e assina esta coluna semanalmente à segunda-feira no "Diário Económico".