quarta-feira, agosto 17, 2005

Leituras liberais

A grande solução

RUI RAMOS

No curioso mundo do dr. Vitorino, o Estado é o sujeito de todas as acções: “incentivar”, “garantir”, “definir”, “ordenar”e “pagar”. Era de esperar. Ardem as árvores, e o país transborda logo com silvicultores de bancada. Num mês, ficámos a saber tudo sobre os matagais a que, com um patriotismo pomposo, chamamos “floresta”. Aprendemos a odiar a monotonia vulnerável dos pinheiros e eucaliptos. Já somos capazes de criticar, em coro afinado, o desleixo dos proprietários ou a desordem do casario.
Na televisão, o dr. António Vitorino destilou fluentemente a sabedoria nacional sobre o assunto. E deu logo a inevitável grande solução: o Estado. No curioso mundo do dr. Vitorino, o Estado é o sujeito de todas as acções: “incentivar”, “garantir”, “definir”, “ordenar”, e ... “pagar”. Os cidadãos existem passivamente, para serem “mobilizados” e “compensados”.
Tudo depende do Estado e da sua “política de ordenamento florestal”. Porquê? Porque, como seria de esperar, a causa do mal é o “lucro no mercado”, razão pela qual os “proprietários” teriam forrado as nossas encostas com “árvores de crescimento rápido”. Eis tudo explicado e tudo resolvido. Mas a história podia ser contada de outra maneira.
Em Portugal, o Estado foi demasiadas vezes um instrumento para aplicar o que alguns políticos iluminados imaginaram ser as receitas do progresso. A ocupação intensiva do território, através da cultura e da “florestação”, foi uma dessas receitas. Em nome do progresso, ignoraram-se condições naturais, atropelaram-se tradições históricas, e questionou-se o direito de propriedade.
O Estado apossou-se de terrenos comunitários para os cobrir de arvoredos instantâneos. A partir de 1919, obrigou os proprietários de incultos com mais de 100 ha a fazer o mesmo. E quando as populações, ingratamente atrasadas, ousaram resistir à grandiosa visão florestal, os iluminados recorreram à força armada para as fazer ver a luz. Aconteceu no Gerez e na Estrela em 1888-1889.

Aquilino Ribeiro tirou de incidentes semelhantes um romance: Quando os Lobos Uivam (1958). Esses pinhais-de-artifício pertencem menos ao cadastro do mercado, do que ao catálogo de desvarios da nossa política desenvolvimentista. Da Ota para trás, a lista é grande. Graças a um complicado sistema de protecção alfandegária, Portugal chegou a ser um dos mais esforçados produtores de trigo, quando era um dos países europeus com menos condições para essa cultura. Em resultado, Lisboa pagou, durante décadas, o pão mais caro da Europa, e os solos do Alentejo foram submetidos a uma erosão inútil. Mas os iluminados, que agora exigem aeroportos, queriam então um país autosuficiente em trigo e madeira, independentemente dos custos. E assim, com muita “mobilização” e muitas “compensações”, se fizeram pinhais e searas, proporcionando bons negócios a alguns.
O Estado dos iluminados foi sempre melhor a dar lucros do que a aplicar a lei. E foi também sempre mais eficaz a destruir do que a repor qualquer ordem. Demasiadas vezes, a passagem do tempo revelou apenas a imprevidência dos iluminados. A “floresta” é um exemplo. Quando as populações abandonaram os campos, o arvoredo do nosso Grande Salto em Frente ficou para trás, como pastagem para incêndios.Em dois séculos, esquecemos muita coisa e não aprendemos nada. Há um problema, e imaginamos logo a solução sob a forma de um decreto-lei que justifique o emprego de mais funcionários, ou sirva para regalar empresários amigos. Se é assim que queremos viver, ou se já não somos capazes de viver de outra maneira, então o melhor é habituarmo-nos aos incêndios, aos défices, e à desordem. Porque o que diz o dr. Vitorino não é solução. É apenas uma grande parte do problema.

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Rui Ramos é historiador, professor universitário, e assina esta coluna semanalmente à quarta-feira no "Diário Económico"