terça-feira, agosto 23, 2005

Leituras Liberais

A DIREITA QUASE INVISÍVEL

José Pedro Zúquete

Quando se fala do fim da ditadura em Portugal todos louvam o nascimento da “novo Portugal”, do início de uma época democrática, sem censura, sem índexes, e com liberdade de expressão para todos. Esta é uma narrativa que se pode fazer do fim de mais de quarenta anos de ditadura. Mas existe outra narrativa menos falada – é aquela que retrata o início de um período onde a esquerda cresceu e a direita encolheu. Se, por um lado, a esquerda portuguesa assumiu as novas liberdades de forma completa e, com o tempo hegemónica, a direita, aterrorizada com a associação ao salazarismo, ganhou complexos, perdeu confiança e nunca se entregou ao combate de ideias que um Portugal verdadeiramente democrático exigia. Alguns dirão que essa foi uma atitude compreensível, afinal de contas, a direita levava aos ombros a obra e a memória da ditadura e, por causa disso, tinha que passar pelo purgatório. Talvez. Mas, passados mais de trinta anos, ao observarmos de perto a realidade portuguesa, constatamos que os fantasmas da direita não foram exorcizados. Mudam-se os tempos mas não se mudam os complexos.

Uma pergunta inicial: quantos partidos posicionados ideologicamente à esquerda fazem referência à palavra “democracia”? Praticamente nenhum. E, se olharmos para a direita, quantos partidos o fazem? Praticamente todos. O último foi o partido de Manuel Monteiro, a Nova Democracia. Este “pormenor” é lapidar. É que em Portugal a direita tem sempre que apresentar as suas credenciais democráticas, como uma espécie de salvo-conduto para participar na vida política portuguesa. A esquerda não tem necessidade de o fazer porque, já se assume, à partida, que a esquerda é, naturalmente, democrática. A direita tem que o provar, à esquerda basta existir. Claro que à esquerda existem tantos ou mais partidos de raiz totalitária e tendências antidemocráticas como à direita, mas esta comparação é útil porque é o espelho de uma mentalidade que, ao fim de trinta anos, continua reinante em Portugal.

Poder-se-á dizer que, nas últimas décadas, a esquerda sofreu derrotas importantes, nomeadamente no campo simbólico, com o fim da referência soviética, e no campo económico com o avançar do neoliberalismo. Contudo, essas derrotas acabaram por ser compensadas por vitórias claras no terreno do combate de ideias, sobretudo porque conseguiu monopolizar o terreno onde esse combate deveria ser feito, nomeadamente na comunicação social e no ensino, dos liceus às universidades. Esta hegemonia cultural da esquerda não é, claro, uma especificidade portuguesa, ela está presente em toda a Europa e nos Estados Unidos, embora no contexto americano exista um verdadeiro movimento intelectual de combate a essa hegemonia. Ora, este monopólio cultural não é algo benigno, pois tem consequências. É que muitas vezes, em vários assuntos, em vez de se formar uma opinião pública, deforma-se a opinião pública. Nos Estados Unidos existem estudos que revelam que a maior parte dos jornalistas e docentes posicionam-se ideologicamente mais à esquerda. Seria importante em Portugal fazer um estudo desse tipo. Porque só quando se fizer o diagnóstico da situação é que um verdadeiro confronto de ideias se pode travar. Até lá, aquilo que muitas vezes não é mais do que uma opinião, em assuntos tão importantes como, por exemplo, o terrorismo ou o papel da União Europeia, passa para a opinião pública como verdade e das escolas aos cafés, passando pelas barbearias, todos regurgitam a mesma “verdade.”

O Bloco de Esquerda é de facto um partido radical, mas constitui em Portugal um bom exemplo da força cultural da esquerda nacional. É uma esquerda que lê, jovem, dinâmica e com ideais. É um dos exemplos mais conseguido da esquerda como movimento. Em Portugal não existe um “movimento” de direita, existem vozes, muitas vezes sem eco, desorganizadas e nalguns casos carrancudas. Ainda não nasceu verdadeiramente em Portugal uma direita que encarne a geração do pós-Vinte e Cinco de Abril, e de que o país tão necessita para os novos desafios culturais do tempo. Uma direita “naturalmente” democrática, moderna, com convicções e sem os complexos e “fantasmas” da velha direita. Uma das consequências nefastas do salazarismo foi a de usurpar os símbolos nacionais que, assim, no pós-Vinte e Cinco de Abril, passaram a ser associados à ditadura e, portanto, perigosos. Que se erga então esta nova geração que quando olha para a bandeira não vê Salazar, mas pura e simplesmente Portugal. Que se erga então esta nova geração que respeita o Vinte e Cinco de Abril, mas que não vive do Vinte e Cinco de Abril.

Costuma dizer-se que ser de esquerda é ser rebelde. Não há bom rebelde que se preze sem a sua t-shirt do Che Guevara. Ora, hoje, é fácil ser anticonformista à direita. Contra a ortodoxia dominante, contra o “politicamente correcto”, contra aquilo que o grande historiador Stanley Payne chamou de “ideologia pós-marxista, com os seus mitos, as suas liturgias e que insiste na exclusividade total, dominante nas elites e na intelligentsia.” Ter a capacidade de pensar num contexto adverso e sem medo do escárnio, do opróbrio e da “morte social” é aquilo que verdadeiramente define a rebeldia de espírito e mente. E essa está cada vez mais à direita. Mesmo para aqueles que não gostam de “rótulos”.

Revista "Atlântico"