sexta-feira, agosto 26, 2005

Leituras Liberais

Horrores

LUCIANO AMARAL

Como se sabe, passaram 60 anos sobre o lançamento das bombas de Hiroxima e Nagasaki. Ajudados pelo carácter único do evento (jamais o mesmo tipo de arma voltaria ser usado) e pela fotogenia do cogumelo atómico, sucederam-se por esse Ocidente fora (incluindo por cá) os exercícios mórbidos de condenação de mais um horror da autoria dos facinorosos “americanos”. Lá apareceu uma ou outra alma caridosa disposta a explicar aos moralistas de ocasião que, na II Guerra Mundial, as bombas atómicas não causaram mais vítimas do que bombardeamentos convencionais ou outras operações militares, e que, no ambiente moral daquela guerra, o género de destruição trazido pelas bombas desde cedo foi aceite e praticado pelos vários contendores. Para dar apenas um de entre muitos exemplos possíveis, só no desembarque americano em Okinawa terão morrido, para além de uma multidão de soldados, cerca de 140.000 civis, os mesmos de Hiroxima e Nagasaki. Eis um tipo de correctivo perfeitamente inútil. Porque, entendamo-nos, os que condenam a Bomba não estão efectivamente preocupados com horror nenhum, tendo apenas como objectivo acrescentar mais um elemento (em conjunto com o Patriot Act, os restaurantes McDonald’s, o massacre dos índios, o porte de armas ou o aquecimento global) ao processo de execração dos Estados Unidos da América.
A prova disso mesmo está no facto de ninguém se ter lembrado de falar em horror quando, alguns dias depois do aniversário das bombas, e a pretexto do aniversário da rendição japonesa, o Primeiro-Ministro Koizumi veio pedir desculpa pelas acções do seu país durante a guerra. Talvez valha a pena lembrar exactamente de que é que Koizumi estava a pedir desculpa. Koizumi estava a pedir desculpa pelas atrocidades cometidas no âmbito da então chamada “Esfera de Co-Prosperidade Asiática”, um eufemismo para o imperialismo japonês. Construída por um regime militarista e racista, a dita “Esfera” ia da China à Indonésia (Timor, por exemplo, conheceu directamente os seus efeitos), passando pela Coreia, a Birmânia, as Filipinas ou a Malásia, e nela os japoneses não se pouparam a brutalidades, seja por motivos de exploração económica, seja por razões gratuitas. O trabalho forçado de autóctones (a juntar ao dos prisioneiros de guerra aliados), por exemplo, foi usado de forma maciça, tendo ficado famosa a sua utilização na construção do caminho-de-ferro da Birmânia (retratada no livro e no filme A Ponte do Rio Kwai), onde se estima tenham morrido cerca de 100.000 pessoas. Contrariamente às convenções militares, inúmeros soldados aliados foram chacinados após as suas rendições. As experiências clínicas do exército japonês, em locais como a Unidade 731, terão utilizado de forma recorrente a dissecação de soldados aliados vivos, havendo mesmo suspeitas de práticas de canibalismo. Também se sucederam os massacres gratuitos (em particular de chineses) em toda a região, de que ficou mais conhecido o massacre de Nanquim (1937), onde se estima terem morrido cerca de 100.000 pessoas. Diz-se que durante a ocupação da China, o Japão usou armas biológicas, com as quais terá envenenado a população de aldeias inteiras do país. Não se sabe ao certo, mas aponta-se para um número de cerca de 400.000 mortos por mês a taxa a que civis das áreas ocupadas e soldados aliados estavam a morrer, ao longo do sudeste asiático, pouco antes do lançamento das bombas atómicas. Deste conjunto de actividades, estima-se que tenha resultado um número de mortos civis, de responsabilidade japonesa, algures entre os 10 milhões e os 30 milhões. Não admira que alguém já tenha chamado a isto “o outro holocausto”.
Relembrar estas coisas permite devolver à sua correcta proporção o horror efectivo das bombas atómicas, para além de ajudar a explicar porque foram utilizadas. Argumenta-se muitas vezes, em favor da futilidade da sua utilização, com o facto de o Japão pretender então a rendição. A verdade é que nada disso é certo. Na estrutura político-militar japonesa havia os que queriam render-se e os que não queriam, e os que queriam não estavam dispostos a aceitar uma rendição incondicional. Ora, sem rendição incondicional as belas práticas humanitárias da Esfera de Co-Prosperidade certamente prosseguiriam. Foi o poder militar sem paralelo das bombas que levou o Japão à rendição incondicional. E só esta rendição permitiu aos EUA imporem a revolução institucional que substituiu o militarismo expansionista do general Tojo pela próspera democracia japonesa que ainda hoje conhecemos. Sem bombas atómicas, Koizumi não andaria agora a pedir desculpa em nome do seu país.
Claro que de pouco serve recordar estas trágicas verdades históricas. As almas sensíveis aos horrores de Hiroxima querem lá saber dos outros (incomensuravelmente mais horrorosos) horrores a que a dita bomba pôs termo. Se se lhes desse importância, como seria então possível continuar a condenar a “barbárie americana” que por aí continua a vigorar no mundo? Claro que não seria. E isso é que interessa.

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Luciano Amaral é professor universitário, promotor das "Noites à Direita" e escreve todas as quintas-feiras no "Diário de Notícias" (este artigo foi publicado ontem no jornal mas não está acessível na edição electrónica)